CHOQUE NO BOLSO
No Brasil, temos dois ambientes de contratação da energia elétrica: o ACR (Ambiente de Contratação Regulado) e o ACL (Ambiente de Contratação Livre). No ACR estão os consumidores das distribuidoras de energia, que pagam tarifas definidas pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica). Não cabe aqui aquela velha discussão, para mim já superada, entre empresa pública e privada, entre estatização e privatização. As regras traçadas pela ANEEL devem ser obedecidas por todos, independentemente de quem sejam seus acionistas. Lucro maior, menor, ou prejuízo, depende da gestão das empresas. Normalmente, essas regras são definidas depois de serem submetidas à Análise de Impacto Regulatório (AIR), Consultas Públicas (CP) e Audiências Públicas (AP).
No ACL, temos duas modalidades de consumidor: a) livres, aqueles com demanda mínima contratada de 1.000 kW e podem ser supridos por qualquer fonte geradora; b) especiais, aqueles com demanda contratada entre 500 kW e 1.000 kW, mas só podem ser supridos por fontes renováveis. Os preços são negociados livremente entre geradores, comercializadores e consumidores, sem a interferência do Poder Concedente. O controle e liquidações da comercialização de energia elétrica é feito pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) e o suprimento pelas mesmas instalações utilizadas pelos consumidores do mercado regulado, também conhecidos como cativo.
O ACR tem hoje 89 milhões de consumidores e o ACL em torno de 10.000 unidades de consumo, esses já representando 35% do nosso mercado de energia elétrica. A grande tendência é que todos os consumidores sejam livres em 2030, escolhendo qual a comercializadora que vai fornecer energia. A distribuidora, como a conhecemos atualmente, funcionará como supridora de última instância, ou seja, oferecendo o serviço através da sua rede de distribuição e subestações transformadoras. Poderemos ter uma portabilidade parecida com a que vemos atualmente na telefonia, pois assim já funciona em vários países.
As agências reguladoras existem há mais de 100 anos nos Estados Unidos. A ANEEL foi instituída em 1996 para ser a reguladora do mercado, ponto de equilíbrio de possíveis conflitos entre o capital privado e o estatal, que começavam a conviver em ambiente de competição. No setor elétrico, o investimento estatal já perdia fôlego, também pela necessidade desses recursos serem utilizados nas áreas sociais desse país de desigualdades gritantes. A Eletrobras, por exemplo, que outrora investia anualmente entre R$ 12 bilhões e R$ 14 bilhões, sua capacidade financeira caiu em média para R$ 3 bilhões, vindo assim, paulatinamente, perdendo mercado e daí a decisão de privatizar. Na concepção de uma Agência Reguladora, órgão de Estado, diretores portadores de mandatos que não podem ser demitidos pelo governo de plantão, com independência financeira, administrativa e quadro de profissionais tecnicamente preparados e bem remunerados porque não pode ser capturada, nem pelo governo, nem pelos empresários, nem pelos consumidores.
Especialistas do setor de energia do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) fizeram um alerta ao próximo governo, que deverá ser pressionado pelo aumento nas tarifas de energia elétrica. Essa verificação foi feita após as contratações para garantir o suprimento de energia elétrica durante a crise hídrica e passaram a defender uma revisão no setor para encontrar soluções estruturais para contas tão caras. Além dos custos normais com a geração, transmissão e distribuição da energia elétrica, as recentes decisões do governo para enfrentar a crise hídrica beiram os R$ 140 bilhões a serem pagos pelos consumidor ao longo de vários anos, que certamente vão pressionar a conta de luz porque tem empréstimos bancários e juros num cenário de inflação com dois dígitos.
O IDEC defende uma mudança de como é feito o pagamento da inadimplência nas contas de luz. Hoje, as distribuidoras dividem os custos das contas que não foram pagas pelos inadimplentes para os demais consumidores, com exceção daqueles que pagam a Tarifa Social. Dados da ANEEL mostram que o residencial de baixa renda é a classe que acumula um maior nível de inadimplência, pois no ano passado chegou a 39,41% das famílias que deixaram de pagar a conta pelo menos em um mês.
Quanto menor for a renda familiar, maior será o gasto proporcional que é utilizado para pagar as contas de luz e gás. Pesquisa realizada por Paula Bezerra, economista e doutora em Planejamento Energético da COPPE/UFRJ, para cada 10 brasileiros, 4 usam pelo menos 50% da sua renda para pagar energia, sendo atualmente o botijão de gás o seu maior vilão. Outra constatação foi que “os 10% mais ricos consomem duas vezes e meia mais eletricidade do que os 10% mais pobres, mas a renda deles é 44 vezes maior. A conta de luz, portanto, não fura o bolso das parcelas mais ricas da sociedade. As agências internacionais consideram uma pessoa “energeticamente pobre” aquela que precisa gastar mais de 10% da sua renda para saldar compromissos com energia, fato que aconteceu em 2018 com mais de um quinto da população brasileira.
A tarifa de energia elétrica no Brasil é a 2ª mais cara do mundo, quando utilizamos a PPC (Paridade do Poder de Compra). O consumidor de energia elétrica que paga tarifa reclama com razão mas precisa ser informado que está pagando os subsídios para o mercado livre, geração distribuída com painéis solares e desconto de 65% para a baixa renda. Isso sem contar com as mazelas do setor, que é um assunto de maior profundidade. As respostas são sempre dadas em meias verdades, com cada segmento interessado mostrando apenas o lado da questão que lhe interessa. Certamente que a precificação da energia é um problema mundial e, é claro, que não pode ser resolvida apenas com a transferência de renda, precisando, realmente, de uma medida econômica e de ajustes no modelo.
Não sou contra o mercado livre, a geração distribuída, muito menos o uso das fontes solares e eólicas para a geração de energia elétrica: só não quero pagar uma conta mais cara para os outros “economizarem”. Para uma necessária “transição energética” está sendo feita uma “substituição energética”, na velocidade dos negócios, cheia de subsídios, gerando inflação, rompimento de contratos e perda de empregos. Por incrível que pareça, depois de todo esse investimento em renováveis, que já tem uma dívida global sustentável de US$ 4 trilhões, o mundo contínua a depender dos combustíveis fósseis, mais precisamente do carvão e do gás natural, combustíveis que podem gerar eletricidade durante 24 h/dia.
Todas as fontes de energia têm seus atributos, possuem vantagens e desvantagens no seu uso e cada país deve planejar seu sistema elétrico levando em conta os vários ângulos da questão energética: entre o físico e o antropológico; entre o social e o econômico e entre o técnico e o sistema de poder. As políticas públicas não podem ser guiadas apenas com o foco nos gases de efeito estufa. Estamos falando de recursos naturais e humanos, disponibilidade, tecnologia, modelo de sociedade, preços e geopolítica. Nossa matriz elétrica já é composta de 83% de fontes renováveis e não nos interessa modelos importados que não atendam aos interesses da sociedade brasileira.
CHOQUE NO BOLSO
por Geoberto Espírito Santo
GES Consultoria, Engenharia e Serviços