SOBROU PRÁ NÓS
“O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação.”
(Oscar Wilde)
Felizmente conseguimos sair da crise hídrica sem enfrentar mais um racionamento de energia elétrica. Mas o custo foi alto, tendo ultrapassado à casa dos R$ 100 bilhões que vai sendo repassado para os consumidores. Isso sem falar nos R$ 28,5 bilhões que o governo contabilizou em gastos com geração para segurança energética, importação de energia da Argentina e do Uruguai e geração adicional por causa das restrições operativas. Devemos colocar nessa conta os R$ 27,5 bilhões do risco hidrológico e R$ 40 bilhões que foram contratados no leilão emergencial. Deixamos de falar aqui na lei que autoriza a capitalização da Eletrobras que poderá custar R$ 80 bilhões, decorrentes de térmicas desnecessárias, reserva de mercado para pequenas hidrelétricas e prorrogação dos contratos do PROINFA (Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica).
Muitos desses custos, e outros aqui não citados, é repassado para todos os consumidores através da CDE (Conta de Desenvolvimento Energética), uma conta não muito transparente para nós que pagamos, que está calculada pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) em R$ 30,5 bilhões para este ano. As tarifas de energia elétrica para 2022 deverão ter acréscimos não só pelo uso maior de térmicas, mas também para o pagamento de dois empréstimos: o da Conta – COVID, de R$ 14,5 bilhões, feito em 2019 e o mais recente, o da Conta-Escassez Hídrica. O montante para este último poderá ser em duas fases, sendo que a primeira já foi autorizada pela ANEEL em R$ 5,3 bilhões e, se necessário, chegar até R$ 10,5 bilhões, cujo reflexo na tarifa é de uma redução de 2,7%.
Criada no ano passado para custear a geração mais cara com o despacho térmico e com a maior importação de energia da Argentina e do Uruguai, a bandeira escassez hídrica não foi suficiente para suprir as necessidades das distribuidoras, mesmo levando em consideração o início das chuvas em novembro passado e o consequente aumento de volume nos reservatórios das hidrelétricas. Sua cobrança está prevista para ser encerrada no final de abril/2022, mas vai depender das condições hidrológicas, do crescimento da economia e dos reflexos nos preços dos combustíveis em função do que venha a ocorrer na guerra da Ucrânia. Portanto, nas tarifas de energia elétrica, além dos custos do sistema, vamos pagar juros bancários num momento em que a inflação está em alta, já chegando na faixa dos dois dígitos. O pagamento do primeiro empréstimo citado deverá se estender até 2025, e o outro até 2027, e que certamente irá pressionar para cima as contas de luz.
Agora os olhos estão voltados para 2022. A consultoria brasileira PSR, uma referência para o setor elétrico mundial, trabalhou com cenários e fez um cálculo mostrando que o risco de um racionamento neste ano está entre 2,1% e 8,8%, índices que são perfeitamente gerenciáveis, mas que exigem muita atenção e constante monitoramento. Uma das questões de maior preocupação para o risco de suprimento em 2022 será o uso múltiplo das águas, sendo a principal o hidrograma de Belo Monte que foi mostrado nas análises de sensibilidade. Caso seja considerado o “hidrograma Ibama” no rio Xingu, onde se encontra a hidrelétrica, os riscos de qualquer racionamento aumentam de 6% para cerca de 10%.
Além do uso múltiplo das águas, a PSR aponta ainda a disponibilidade dos equipamentos de geração e de combustíveis, o sistema de transmissão, manutenção do despacho térmico “forçado’ das térmicas a gás natural no período úmido de 2022 e o monitoramento da oferta. Certamente que as vazões são sempre fundamentais num sistema de grande participação da fonte hídrica e cita que afluências acumuladas desde dezembro de 2021 a abril de 2022, sendo acima de 80%, elimina qualquer possibilidade de risco de racionamento no pior cenário que foi traçado. Se nesse último período úmido tivermos afluências de 73% da MLT (Média de Longo Termo), o risco de um racionamento na demanda de até 5%, é de 4,5%. Nessa metodologia, em relação às passadas, a diferença foi a entrada nas análises de diferentes fatores de incertezas. Na criação dos cenários, a PSR utilizou dois modelos estocásticos de afluências: o oficial e um outro, representando o “novo normal” de secas mais frequentes e severas. Como já foi dito, nos cenários de entrada são considerados a nova oferta, alteração do hidrograma de Belo Monte, ações de flexibilização de restrições e a geração térmica fora da ordem de mérito.
Para que isso venha a ser evitado nos próximos anos, três coisas deverão ser feitas: limitar o uso de térmicas mais caras na geração de energia elétrica, não concentrar o pagamento de subsídios apenas no consumidor regulado e estimular a eficiência energética. Por serem de operação mais cara os combustíveis fósseis devem ser limitados, a depender, obviamente, do regime de chuvas, pois não há muita coisa a fazer no curto prazo. Os modelos de operação e comercialização devem ser revistos, colocando foco em uma tarifação progressiva, como por exemplo, a separação do custo de uso da infraestrutura do fornecimento de energia elétrica com preços diferenciados por faixa de consumo, pois nesse caso seria possível isentar os mais pobres e aplicar uma cobrança maior dos consumidores mais ricos. No que se refere à eficiência energética, desde 1985 foi criado o PROCEL (Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica), mas os dados de redução do consumo apontam que houve um estacionamento desde 2017. No período de 2018 até 2020, o programa obteve ganhos maiores que 22 bilhões de kWh. Mas é sempre bom salientar que programas de eficiência energética são feitos para melhorar a competitividade econômica, não sendo adequados para resolver crises de falta de geração.
E assim vamos nós, um país pródigo que possui, praticamente, todas as fontes de geração de energia para a montagem de uma matriz elétrica sustentável e sustentada, com a 2ª tarifa mais cara do mundo, hoje perdendo apenas para a Alemanha. Diante desses números ficamos indagando se a economia brasileira está trabalhando para o setor de energia, quando o normal é o setor de energia trabalhar para a economia do país. Recentemente, o Congresso Nacional passou a legislar entrando em detalhes técnicos de mercado, que estão mudando cada vez mais rapidamente, e cedendo às pressões de diferentes segmentos do setor, termina beneficiando alguns agentes, aprofundando as ineficiências, inflacionando custos e deixando desamparado aquele que é o elo mais fraco da corrente: os consumidores. Vem aí o PL 414/2021, sobre a modernização do setor.
SOBROU PRÁ NÓS
por Geoberto Espírito Santo
CEO da GES Consultoria, Engenharia e Serviços
Pietro Erber
25 de abril de 2022 em 19:59Parabéns, Geoberto
Análise equilibrada e completa do descalabro que vem se abatendo sobre o setor elétrico e, consequentemente, sobre nós, consumidores, bem como sobe a economia do país. Tenho dúvidas sobre o acerto de evitar um racionamento moderado, bem menor do que o de 2001, ao custo que temos de arcar.
Abraço
Pietro