27 / 06 / 24

SEMPRE QUEM PAGA SOU EU

SEMPRE QUEM PAGA SOU EU

“Desde que me entendo por gente” é uma expressão popular que dizemos quando começamos a tomar consciência de certas coisas, uma percepção de tudo aquilo que nos cerca. A gente pensa que saindo da Universidade já tomou essa consciência, mas o passar do tempo vai nos mostrando como as coisas funcionam, na “prática”. Em mais de meio século trabalhando com serviços públicos, “estive no fundo de cada vontade encoberta”, como canta Erasmo Carlos em Força Estranha, e não consigo posicionar o Brasil entre o inusitado e o surreal.

Aqui, o Judiciário também legisla, o Legislativo controla grande parte do orçamento e o Executivo deixa de lado o equilíbrio orçamentário sem levar em conta que a estabilidade política vem a reboque. Ministros das Cortes Superiores divulgam suas preferências políticas e dão entrevistas de tal forma que, como “gente”, já identificamos qual vai ser o resultado de uma votação. O Zeca Pagodinho canta samba; os Originais do Samba, cantam pagode; os cantores “sertanejos”, nunca puseram o pé no sertão e as “músicas” não representam o sofrimento secular daquele povo imposto pela seca e pela fome. No retorno de uma ligação telefônica não reconhecida, ouvimos que “esse número de telefone não existe”. Temos uma produção de energia elétrica com um dos mais baixos custos de geração com uma das tarifas mais caras do mundo e uma desigualdade social das maiores do planeta.

De Alagoas, compro um ar condicionado em São Paulo. Não importa que seja transportado por caminhão ou por avião, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) é cobrado apenas no destino da mercadoria, não incidindo sobre a infraestrutura do transporte. Mas no setor elétrico é diferente, pois sempre foi cobrado também na transmissão e na distribuição. Desde 2009, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) se manifestou favorável aos consumidores, ou seja, o imposto não incide sobre a transmissão e a distribuição. A Lei Complementar nº 194/2022 reforçou o Art.3º da Lei Kandir (LC 87/96) e incluiu a TUST (Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão) e a TUSD (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição) nos itens isentos de incidência de ICMS. Mas, recentemente, o STJ decidiu que a TUST e a TUSD devem ser incluídas na sua base de cálculo, quando os estados questionaram sua constitucionalidade (ADI 7.195) no STF (Supremo Tribunal Federal), argumentando perda de arrecadação. Aí foi feita uma modulação, pois os consumidores que foram beneficiados até 27/03/2017 poderão recolher a TUST e a TUSD sem o imposto, desde que a antecipação de tutela esteja vigente até agora.

Assim, deixou um entendimento que a Carta Magna pode ser aplicada por períodos, inclusive porque a decisão atual de incidência contraria jurisprudência do próprio STJ, que as tarifas de uso da rede elétrica não integravam a base de cálculo do ICMS sobre o preço final da energia. Essa decisão gerou insegurança jurídica e foi interpretada como que tivesse um viés político, pois naquele momento, os estados, quase sempre perdulários, reclamavam perda de arrecadação. Por conta das liminares, essas perdas eram estimadas entre R$ 30 bilhões e R$ 33 bilhões por ano. Na GD (geração distribuída), muitos não compensam totalmente seu consumo, usam só a distribuição, mas vão pagar ICMS também na transmissão. A TUST e a TUSD representam quase 50% da tarifa de energia e a não incidência reduziria a conta em torno de 17%.

Se a Medida Provisória (MP) 1.212/2024, a das Energias Renováveis e da Redução Tarifaria, tivesse ficado só com a titulação final seria muito bom para o consumidor. Em função do processo de desestatização da Eletrobras, vão ser securitizados R$ 26 bilhões dos R$ 32 bilhões que cabem à União, para os consumidores deixarem de pagar 4% na conta de luz, nela incluídos juros abusivos contraídos pelas crises da Conta Covid e da escassez hídrica, cujas origens não são de sua responsabilidade. Isso tem um custo financeiro, mas o restante deverá ser utilizado para reduzir a estrutura de subsídios que está na CDE (Conta de Desenvolvimento Energético). Mas falou em Energia Renováveis, o argumento do momento para os investimentos fantásticos, e lá vem o populismo energético com mais subsídios desnecessários para o consumidor pagar R$ 4,5 bilhões/ano a partir de 2029. Continuam na MP as térmicas de contratação obrigatória da Lei de Privatização da Eletrobras, um aumento gradual nas tarifas que pode chegar a 12,5% a partir de 2030. No corte do gás natural feito pela Rússia para a Europa, o governo francês enviou a cada consumidor de energia um cheque relativo ao incremento no custo da eletricidade para ser abatido no banco quando do pagamento da sua conta de luz.

De há muito os reajustes tarifários registram percentuais alarmantes em relação aos índices econômicos, mas os governos continuaram sancionando leis criando políticas públicas cheias de subsídios custeados pelos consumidores de energia elétrica e não pelo Tesouro Nacional. Todo mundo reclama do alto valor da tarifa de energia elétrica, incluindo Presidente da República, parlamentares e ministros. Mas, quando as leis são sancionadas vemos que o elo da corrente política sempre quebra pelo lado do mais fraco, forte apenas em dois dias de 4 em 4 anos. Fez-me lembrar agora o chanceler do império prussiano, Otto von Bismarck (1815-1898): “Quando um governo diz que concorda em princípio com alguma coisa, está dizendo que não tem a menor vontade de praticá-la.”

Não é só o papel das distribuidoras que precisa ser redefinido, para acabar com o Robin Hood às avessas da GD (geração distribuída). A renovação das concessões das distribuidoras não pode ser visualizada nas regras atuais, pois os eventos climáticos extremos, como os que aconteceram em SP e RS, que fogem do controle operacional da distribuidora, vão exigir investimentos com remuneração não permitida. Com as regras atuais caminhamos para uma abertura total do mercado, quando estudos encomendados mostram apenas a redução de custos para os aderentes, lógico. Essa decisão requer muito cuidado, pois o mercado só será realmente livre quando não tiver subsídios pagos por outros consumidores e com o preço da energia por oferta. Mas parece que a associação das comercializadoras de energia quer continuar com as regras atuais, preço pelo custo definido pelos computadores oficiais. O TCU já sinalizou para a ANEEL que o mercado livre para baixa tensão já foi criado com a venda de energia da GD por assinatura, e ela nem percebeu.

Governo e Congresso precisam discutir objetivamente soluções estruturais de modernização do setor elétrico brasileiro que assegurem a governança, o planejamento de longo prazo e o poder de regulação das mutações do mercado exercido pela flexibilidade das agências reguladoras.

SEMPRE QUEM PAGA SOU EU
Por Geoberto Espírito Santo
Personal Energy da GES Consultoria, Engenharia e Serviços

Geoberto Espírito Santo

SinergiaGeoberto Espírito Santo é Engenheiro Civil, formado em 1971 pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente é Consultor do SINDENERGIA – Sindicato das Indústrias de Energia do Estado de Alagoas e Personal Energy da GES Consultoria, Engenharia e Serviços – GES Consult ATIVIDADES QUE EXERCEU: - Engenheiro da Companhia Energética de Alagoas (CEAL), por 28 anos - Diretor de Operação da Companhia de Eletricidade de Alagoas - CEAL - Secretário de Administração da Prefeitura Municipal de Maceió - Assessor de Coordenação e Planejamento da Empresa de Recursos Naturais do Estado de Alagoas - EDRN - Chefe de Gabinete da Diretoria de Desenvolvimento Energético da CEAL - Assessor da Subcomissão de Minas e Energia do Senado Federal - Diretor de Distribuição e Comercialização da Companhia Energética de Alagoas - CEAL - Consultor em eficiência energética do PNUD / ELETROBRÁS - Secretário Executivo do Núcleo de Eficiência Energética na Indústria (NEEI / FIEA) - Secretário Executivo do Conselho Estadual de Política Energética de Alagoas - CEPE - Secretário de Estado Adjunto de Energia e Recursos Minerais de Alagoas - Vice-Presidente de Planejamento Energético do Fórum Nacional dos Secretários de Estado para Assuntos de Energia - FNSE - Representante da Região Nordeste no Conselho Consultivo da Empresa de Pesquisa Energética – EPE - Diretor Presidente da Gás de Alagoas S.A. – ALGÁS - Vice-Presidente do Conselho Estadual de Política Energética de Alagoas – CEPE - Presidente do Conselho Fiscal da ABEGÁS – Associação Brasileira das Empresas das Empresas Distribuidoras de Gás Natural – ABEGÁS - Professor nas disciplinas de Eletricidade e Eletrotécnica, no Centro de Tecnologia da Universidade Federal de Alagoas – UFAL - Membro do Conselho Estadual de Política Energética – CEPE LIVROS E TRABALHOS PUBLICADOS: - Protestos e Propostas (EDUFAL) - Energia: Um Mergulho na Crise (IGASA) - Política e Modelagem do Setor Elétrico (Imprensa Oficial GRACILIANO RAMOS) - Espírito Cidadão (EDUFAL) - Vários trabalhos sobre energia publicados nos anais de Seminários, Congressos Nacionais e Revista Internacional

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