DO PATO AO DESFILADEIRO
Temos uma potência instalada para geração de eletricidade no Sistema Interligado Nacional (SIN) de 235.606 MW, para uma demanda máxima de 83.741 MW registrada em setembro passado. As principais fontes de geração da nossa matriz elétrica (não confundir com matriz energética) que compõem esse total em potência instalada (não é em energia gerada) são as seguintes: hidrelétrica (46,7%); solar fotovoltaica (19,4%); eólica (13,3%); gás natural (7,6%); biomassa + biogás (7,3%); petróleo e outros fósseis (3,4%); carvão (1,5%) e nuclear (0,8%). Em potência instalada, temos energia de sobra para o atendimento ao mercado consumidor, com geração disponibilizada sendo remunerada sem produzir e ramais de transmissão subutilizados acrescentando custos desnecessários nas tarifas de energia elétrica. Todas as fontes são importantes, mas vale salientar que cada uma possui características próprias, razão pela qual a matriz elétrica de geração não obedece aos percentuais da matriz potência.
Não é tarefa fácil equilibrar eficientemente oferta e demanda com eólicas e solares gerando no Nordeste e o maior consumo no Sudeste. Desde abril de 2024, a segurança do abastecimento de energia elétrica na “hora da ponta” do sistema vem preocupando o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Por causa do calor no verão e o intenso acionamento de aparelhos de ar condicionado, essa “hora da ponta” vem ocorrendo no período das 14h às 16h no 1ª trimestre do ano. No restante, essa maior demanda acontece entre 18h e 20h, período em que as solares já deixaram de produzir e as eólicas ainda não estão gerando com sua potência máxima. Em agosto, a geração solar total no Brasil utilizava em torno de 30.000 MW entre o meio-dia e as 13h, caindo para 50 MW às 18:30h, valores que já incluem a geração nos painéis solares instalados nas residências dos prosumidores. Às 18:44h, a demanda máxima do país requisitava 90.060 MW de potência.
Na “hora da ponta”, essa diferença entre geração e consumo é de 40.000 MW, ou seja, de 17% do total da potência instalada. Esse comportamento é conhecido como a “Curva do Pato” e o déficit precisa ser rapidamente coberto por hidrelétricas e/ou térmicas, a depender de onde a demanda estiver sendo solicitada. Para não ter maiores reflexos nas tarifas, o ONS deve saber quais usinas estão disponíveis para o despacho e quanto custa essa disponibilidade, uma “ordem de mérito” econômico utilizada para autorizar a entrada em operação de usinas. A onda de calor e as queimadas na região Norte afetaram os rios da Amazônia e o menor volume de água atingiu a geração das usinas de Santo Antônio, Belo Monte e Jirau, hidrelétricas consideradas estruturantes para o SIN. A geração na região diminuiu e a demanda ultrapassou a produção, com o intercâmbio deixando de ser exportador de energia hidráulica para importador.
O crescimento da demanda e um mercado totalmente livre vão levar a expansão do sistema a ser feita com renováveis, que são intermitentes, sendo que 80% tende a ser pela fonte solar. Portanto, a tendência é que a “Curva do Pato” passe a ser a “Curva do Desfiladeiro”, como já ocorreu na Califórnia, onde, por sinal, tudo acontece como experiências para o setor elétrico. Recentes estudos feitos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) identificaram a necessidade de uma potência adicional no sistema de 5.500 MW em 2028 com fontes “despacháveis”, ou seja, que podem ser acionadas a qualquer momento. Na ponta do sistema atual não se pode contar com eólicas e solares, por serem intermitentes e dependerem das condições climáticas para gerar energia; precisamos ligar as térmicas. Poderão acontecer picos de geração não absorvidos pela rede, em que, nem térmicas, nem renováveis, conseguem absorver esses excessos.
A importância do armazenamento é clara, a regulamentação com o uso de baterias está em desenvolvimento, mas precisa tempo para integrar essa nova tecnologia com geradores, distribuidores e consumidores. Somente na próxima década o armazenamento verde de grande porte poderá ser sentido em nosso sistema porque, mesmo disponíveis, devem ser instalados em locais estratégicos para ajudarem no alívio da sobrecarga e na distribuição mais equilibrada. Por requerer significativos investimentos e apresentar altos custos, é preciso ter garantias não só com leilões, como também com incentivos pelo governo e a remuneração dos serviços ancilares que o armazenamento pode prestar. Portanto, a intermitência e a regulação existente são fatores baseados nos quais as termelétricas continuarão sendo cruciais para a segurança no abastecimento nos períodos de baixa produção das fontes renováveis.
Uma medida sempre adotada na América do Norte e na Europa, é o Horário de Verão, que deve voltar este ano no Brasil até fevereiro de 2025. O Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) mostra uma redução de 2 GW na hora do pico, economia de R$ 356 milhões com combustíveis fósseis e um acúmulo anual de R$ 1,8 bilhão com receitas da reserva de capacidade. Pesquisas com a população deram uma pequena vantagem a favor da aplicação da medida. São favoráveis setores do comércio, turismo e lazer, que se beneficiam com a luz natural ao final do dia com mais arrecadação e emprego nos bares, restaurantes e atividades ao ar livre. A desaprovação vem pelo lado das indústrias, com a logística e os ajustes nas escalas de trabalho e pelo setor de transporte aéreo. O ritmo biológico das pessoas também é afetado, provocando cansaço, insônia e queda na produtividade.
O Programa Resposta da Demanda é uma estratégia adotada em vários países para reduzir o custo das térmicas, mas vale somente para consumidores de grande porte. O operador do sistema, sabendo que será necessário ligar térmicas com custo variando entre R$ 880/MWh e R$ 2.000/MWh, entra em contato com as indústrias perguntando se elas podem retirar carga na hora da ponta, em lotes de 5 MW, por no mínimo 4 horas. Ao invés de acionar uma térmica que custa R$ 880/MWh, o operador oferece, por exemplo, R$ 650/MWh para a indústria tirar carga na hora da ponta do sistema elétrico. A empresa vai para a “ponta do lápis” calcular se sai mais barato parar a produção por alguns dias e se pode oferecer o corte de carga para diminuir o uso das térmicas no sistema. O governo brasileiro não gosta de divulgar esse Programa, para não dar a impressão ao grande público que estamos à beira de um racionamento na hora da ponta. (Valor Econômico, em 04/10/2024)
DO PATO AO DESFILADEIRO
Por Geoberto Espírito Santo
Personal Energy da GES Consultoria, Engenharia e Serviços